Saí do albergue de Borres, na companhia do Leonel, com mais esperança do que convicção, de que o tempo permitisse uma subida tranquila pela Rota dos Hospitais, que permitisse desfrutar da etapa rainha do Caminho Primitivo, por assim dizer! Eram 08h00 da manhã quando, a pouco e pouco, começámos a deixar para trás Borres e a ir ao encontro da montanha! A alternativa pela Rota dos Hospitais iniciou pouco depois de Borres e estava devidamente sinalizada com um marco e uma placa. Em boa verdade decidimo-nos por esta via, sem certezas sobre as condições meteorológicas que estariam lá no alto, mas sabíamos que, pelo menos, havia neve! Mais tarde soube que perguntaram a um velhote que andava a passear os cães, se havia muita neve lá no alto ao que o senhor respondeu que não havia! Pois, pudera, até onde ele tinha ido se calhar não havia! Eh!Eh!Eh!
Bom, é verdade que sonhámos durante bastante tempo com esta etapa, e não podíamos desistir dela assim de ânimo leve e sem um forte motivo! Pelo que todo o grupo: os 7 portugueses, o Javi, a Pilar, a Viveca e o Jacob, decidiu subir atravessando a variante dos Hospitais! Digamos que assumimos o risco, mas ainda assim um risco calculado! A parte inicial foi pacífica com o ascenso a progredir de forma gradual! Mas, logo depois e à medida que íamos ganhando altitude, o vento começou a soprar com fortes e gélidas rajadas, numa fase em que apenas se vislumbrava um salpico ou outro de neve. Após termos passado por La Paradiella e por Valla Amarilla e antes do primeiro ascenso digno desse nome, tocou, nos nossos sentidos, o primeiro sinal de alarme, foi precisamente junto às ruínas do primeiro hospital (albergue) denominado Paradiella, que o vento fustigou sem pedir licença, era forte e gélido! Nesta fase eu seguia na cauda do grupo com o Delfino, parámos para nos agasalharmos como exigiam as condições atmosféricas que ali se faziam sentir! Foi uma pausa de pouco mais de 5 minutos, ao longe avistámos alguns elementos do nosso grupo a iniciar o primeiro patamar de subida!
Retomámos a marcha preparados a rigor para o frio e para o vento, ou antes se preferirem, para o vento frio e forte! Passámos por uma manada de vacas que acudia aos brados dos seus tratadores que lhes deitavam ração pelo chão. Lembro-me de pensar como era possível aqueles animais aguentarem aquelas condições adversas, mas não eram os únicos, um pouco antes já tínhamos passado por uma manada de cavalos que vagueava acima e abaixo por aquelas agrestes encostas! Ultrapassada com sucesso a primeira subida digna desse nome, começou a surgir mais neve e o vento parecia começar a fustigar de todos os lados! O nevoeiro baixou sem qualquer aviso, ou melhor já ali se encontrava, e engolia-nos à medida que ganhávamos altitude! A neve começou a surgir mais amiúde e deu para ver que era recente, pois estava fofa e cedia à nossa passagem. Fomos seguindo as pegadas dos que nos precediam e de facto isso veio a revelar-se uma vantagem para nós, pois evitámos pisar muitas vezes em terreno falso! Sem quase darmos por isso entrámos no epicentro da tormenta, numa mistura de vento forte e frio, com nevoeiro e alguma chuva gelada e, para ajudar à festa, com imensa neve no solo!
De quando em vez o dia parecia querer clarear, era o sol a tentar desesperadamente furar, sem sucesso, o denso nevoeiro! Não vos consigo descrever as sensações que me assolaram, a adrenalina estava ao rubro, os sentidos todos alerta e invadiu-me uma força e uma energia que nunca antes tinha sentido! Em 13 anos a calcorrear a penantes “seca e meca”, esta era de facto uma travessia que iria perdurar eternamente! Por isso havia que estar ao nível da sua exigência! Fomos progredindo com a serenidade possível, mas sem nunca vacilar! Ao chegarmos às ruinas do segundo hospital (albergue) denominado Fonfarón, o vento amainou subitamente! Por momentos pensámos em entrar, mas o chão deste antigo albergue estava cheio de água. Aproveitámos a trégua do vento, para aliviarmos as bexigas, para beber água e comer uma barrita. Mais à frente e após passarmos pelas ruínas do antigo hospital de peregrinos de Valparaíso, continuamos a marcha em direção ao Alto de La Marta (1.105 metros de altitude), atravessámos a estrada para nos embrenharmos de novo pela montanha!
Foi o derradeiro round do confronto entre o homem e a força da natureza! Quase sem darmos por isso chegávamos ao Puerto Del Palo (1.146 metros de altitude), no entanto fiquei com a ideia que já tinhamos estado em locais de maior altitude, sensação que veio a confirmar-se como facto, um pouco mais tarde pelo gps do Manuel Correia que registou 1.285 m ainda antes do Puerto Del Palo! Registámos fotograficamente o que foi possível, incluindo a chegada ao Puerto Del Palo! Quando iniciámos o descenso (e que descida…!) que nos haveria de levar até Montefurado, estávamos com uma sensação de dever cumprido! À medida que desciamos e íamos perdendo cota, o vento amainava e o nevoeiro ía dissipando, mas a chuva teimava em permanecer! Para nós, pelo menos para mim, tinham sido simultaneamente os 14 km mais terríveis, mas também os mais fantásticos que alguma vez havia percorrido! Aquilo que à partida nos deixara mais apreensivos, o desnível acumulado de mais de 650 metros de altitude, veio a verificar-se que, afinal, tinha sido o menor dos nossos problemas! Ao chegarmos a Montefurado conseguimos finalmente avistar o nosso pessoal, desde o primeiro hospital que não os avistávamos!
Tinham feito uma pausa para descansar, para se abrigarem da chuva e para comerem algo! Mais tarde soube que o grupo se dividiu em três partes e que o pessoal da frente chegou à povoação de Lago com mais de 1 hora e trinta minutos de avanço do segundo grupo!? Foi aqui que eu e o Delfino efetuámos também uma prolongada e merecida pausa! Às 17h45 chegámos a Berducedo, debaixo de chuva para variar. O albergue municipal já estava completo, pelo que nós continuámos até ao albergue privado denominado “Camino Antigo” e em boa hora o fizemos! Ficámos os 2 instalados condignamente, “solos” e com cozinha à nossa disposição! Casa de banho só para “nosotros”, enxugámos roupa, enfim, deu para algumas mordomias que nesse dia, e tendo em conta o rigor da etapa, nós agradecemos muito! Como em Berducedo não havia restaurantes eu, o Delfino e o Ramos comemos tortilha de jambon regada com um tinto Rioja, café e xupito! De seguida fomos ter com o resto da “tropa” a um bar onde já tínhamos estado durante o final da tarde, assistimos ao Bayern de Munique – Real Madrid, comprámos uma sopita instantânea para comer à deita no albergue e comprámos também o pequeno-almoço da manhã seguinte. Foi uma etapa de 26 km, de emoções muito fortes, mas que, feitas as contas, valeu bem a pena! Uma ultima nota para endereçar os meus sinceros parabéns a quem sinalizou a Rota dos Hospitais! Um trabalho de grande qualidade e que merece ser exaltado!
Fotos (autoria): António Delfino e Manuel Correia