segunda-feira, 7 de maio de 2012

Caminho Primitivo: Dia 4 (17 de Abril: Borres – Berducedo, pela Variante dos Hospitais)


Saí do albergue de Borres, na companhia do Leonel, com mais esperança do que convicção, de que o tempo permitisse uma subida tranquila pela Rota dos Hospitais, que permitisse desfrutar da etapa rainha do Caminho Primitivo, por assim dizer! Eram 08h00 da manhã quando, a pouco e pouco, começámos a deixar para trás Borres e a ir ao encontro da montanha! A alternativa pela Rota dos Hospitais iniciou pouco depois de Borres e estava devidamente sinalizada com um marco e uma placa. Em boa verdade decidimo-nos por esta via, sem certezas sobre as condições meteorológicas que estariam lá no alto, mas sabíamos que, pelo menos, havia neve! Mais tarde soube que perguntaram a um velhote que andava a passear os cães, se havia muita neve lá no alto ao que o senhor respondeu que não havia! Pois, pudera, até onde ele tinha ido se calhar não havia! Eh!Eh!Eh!

Bom, é verdade que sonhámos durante bastante tempo com esta etapa, e não podíamos desistir dela assim de ânimo leve e sem um forte motivo! Pelo que todo o grupo: os 7 portugueses, o Javi, a Pilar, a Viveca e o Jacob, decidiu subir atravessando a variante dos Hospitais! Digamos que assumimos o risco, mas ainda assim um risco calculado! A parte inicial foi pacífica com o ascenso a progredir de forma gradual! Mas, logo depois e à medida que íamos ganhando altitude, o vento começou a soprar com fortes e gélidas rajadas, numa fase em que apenas se vislumbrava um salpico ou outro de neve. Após termos passado por La Paradiella e por Valla Amarilla e antes do primeiro ascenso digno desse nome, tocou, nos nossos sentidos, o primeiro sinal de alarme, foi precisamente junto às ruínas do primeiro hospital (albergue) denominado Paradiella, que o vento fustigou sem pedir licença, era forte e gélido! Nesta fase eu seguia na cauda do grupo com o Delfino, parámos para nos agasalharmos como exigiam as condições atmosféricas que ali se faziam sentir! Foi uma pausa de pouco mais de 5 minutos, ao longe avistámos alguns elementos do nosso grupo a iniciar o primeiro patamar de subida! 

Retomámos a marcha preparados a rigor para o frio e para o vento, ou antes se preferirem, para o vento frio e forte! Passámos por uma manada de vacas que acudia aos brados dos seus tratadores que lhes deitavam ração pelo chão. Lembro-me de pensar como era possível aqueles animais aguentarem aquelas condições adversas, mas não eram os únicos, um pouco antes já tínhamos passado por uma manada de cavalos que vagueava acima e abaixo por aquelas agrestes encostas! Ultrapassada com sucesso a primeira subida digna desse nome, começou a surgir mais neve e o vento parecia começar a fustigar de todos os lados! O nevoeiro baixou sem qualquer aviso, ou melhor já ali se encontrava, e engolia-nos à medida que ganhávamos altitude! A neve começou a surgir mais amiúde e deu para ver que era recente, pois estava fofa e cedia à nossa passagem. Fomos seguindo as pegadas dos que nos precediam e de facto isso veio a revelar-se uma vantagem para nós, pois evitámos pisar muitas vezes em terreno falso! Sem quase darmos por isso entrámos no epicentro da tormenta, numa mistura de vento forte e frio, com nevoeiro e alguma chuva gelada e, para ajudar à festa, com imensa neve no solo!

De quando em vez o dia parecia querer clarear, era o sol a tentar desesperadamente furar, sem sucesso, o denso nevoeiro! Não vos consigo descrever as sensações que me assolaram, a adrenalina estava ao rubro, os sentidos todos alerta e invadiu-me uma força e uma energia que nunca antes tinha sentido! Em 13 anos a calcorrear a penantes “seca e meca”, esta era de facto uma travessia que iria perdurar eternamente! Por isso havia que estar ao nível da sua exigência! Fomos progredindo com a serenidade possível, mas sem nunca vacilar! Ao chegarmos às ruinas do segundo hospital (albergue) denominado Fonfarón, o vento amainou subitamente! Por momentos pensámos em entrar, mas o chão deste antigo albergue estava cheio de água. Aproveitámos a trégua do vento, para aliviarmos as bexigas, para beber água e comer uma barrita. Mais à frente e após passarmos pelas ruínas do antigo hospital de peregrinos de Valparaíso, continuamos a marcha em direção ao Alto de La Marta (1.105 metros de altitude), atravessámos a estrada para nos embrenharmos de novo pela montanha! 

Foi o derradeiro round do confronto entre o homem e a força da natureza! Quase sem darmos por isso chegávamos ao Puerto Del Palo (1.146 metros de altitude), no entanto fiquei com a ideia que já tinhamos estado em locais de maior altitude, sensação que veio a confirmar-se como facto, um pouco mais tarde pelo gps do Manuel Correia que registou 1.285 m ainda antes do Puerto Del Palo! Registámos fotograficamente o que foi possível, incluindo a chegada ao Puerto Del Palo! Quando iniciámos o descenso (e que descida…!) que nos haveria de levar até Montefurado, estávamos com uma sensação de dever cumprido! À medida que desciamos e íamos perdendo cota, o vento amainava e o nevoeiro ía dissipando, mas a chuva teimava em permanecer! Para nós, pelo menos para mim, tinham sido simultaneamente os 14 km mais terríveis, mas também os mais fantásticos que alguma vez havia percorrido! Aquilo que à partida nos deixara mais apreensivos, o desnível acumulado de mais de 650 metros de altitude, veio a verificar-se que, afinal, tinha sido o menor dos nossos problemas! Ao chegarmos a Montefurado conseguimos finalmente avistar o nosso pessoal, desde o primeiro hospital que não os avistávamos! 

Tinham feito uma pausa para descansar, para se abrigarem da chuva e para comerem algo! Mais tarde soube que o grupo se dividiu em três partes e que o pessoal da frente chegou à povoação de Lago com mais de 1 hora e trinta minutos de avanço do segundo grupo!? Foi aqui que eu e o Delfino efetuámos também uma prolongada e merecida pausa! Às 17h45 chegámos a Berducedo, debaixo de chuva para variar. O albergue municipal já estava completo, pelo que nós continuámos até ao albergue privado denominado “Camino Antigo” e em boa hora o fizemos! Ficámos os 2 instalados condignamente, “solos” e com cozinha à nossa disposição! Casa de banho só para “nosotros”, enxugámos roupa, enfim, deu para algumas mordomias que nesse dia, e tendo em conta o rigor da etapa, nós agradecemos muito! Como em Berducedo não havia restaurantes eu, o Delfino e o Ramos comemos tortilha de jambon regada com um tinto Rioja, café e xupito! De seguida fomos ter com o resto da “tropa” a um bar onde já tínhamos estado durante o final da tarde, assistimos ao Bayern de Munique – Real Madrid, comprámos uma sopita instantânea para comer à deita no albergue e comprámos também o pequeno-almoço da manhã seguinte. Foi uma etapa de 26 km, de emoções muito fortes, mas que, feitas as contas, valeu bem a pena! Uma ultima nota para endereçar os meus  sinceros parabéns a quem sinalizou a Rota dos Hospitais! Um trabalho de grande qualidade e que merece ser exaltado!  

Fotos (autoria): António Delfino e Manuel Correia

2 comentários:

  1. Belissimo relato de uma etapa dura mas de uma rara beleza, a melhor que alguma vez fiz nos vários caminho de Santiago que fiz. Parabéns, não é nada fácil fazer essa etapa num dia como o que apanharam, com frio e neve. Quando fiz em Setembro de 2014, estava um dia bom para caminhar, parti um pouco mais atrás de Campiello, quando cheguei ao marco da decisão não tive dúvidas em seguir por hospitales, a maioria dos peregrinos também tomou essa decisão, éramos um grupo imenso disperso pela subida, muita solidariedade entre todos, peregrinos de várias nacionalidades, espanhóis, italianos, americanos, sírios, alemães, franceses, a grande maioria eram jovens, era o único português nesse dia, foi um dia memorável, apesar do trambolhão que após passar Montefurado, que podia ter causado graves consequencias mas felizmente tive a mão do apostolo que me amparou, apenas fracturei o nariz e alguns arranhões, no final tive que pernoitar em Grandas de Salime, pois estava tudo esgotado em Berducedo e La Mesa, no dia seguinte retornei a Berducedo e prossegui a minha peregrinação. Sérgio só um pequeno esclarecimento ao magnífico relato da vossa etapa o primeiro hospital (ruinas) é Paradella, depois vem Fonfarron e de seguida Valparaíso, em tempos idos existiram três hospitais nessa zona. Obrigada pelo magnifico relato dessa etapa rainha do caminho primitivo. Bom caminho sempre amigo peregrino dos caminhos de Santiago.

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  2. Olá, caro amigo peregrino José Gaspar:

    Registo e agradeço a sua mensagem e o seu reparo! A correção está feita! Foi uma jornada terrível e debaixo de mau tempo, o que motivou algumas imprecisões no "diário de bordo"! Vamos repetir este Caminho em Junho de 2016, esperemos que com melhor tempo para registar e contemplar o que não foi possível em Abril de 2012! Bom Caminho e bem-haja!

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