quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A História de Pedro e Jacomina (IV)

Primeiro era só escuridão. Depois Pedro começou a ouvir a voz de Jacomina, primeiro como um murmúrio, quase imperceptível, mas a pouco e pouco cada vez mais audível, “Pedro, acorda por favor, estás a ouvir-me?”, Pedro queria falar-lhe mas não era capaz, era como se alguma força oculta lhe travasse a língua e os movimentos do corpo. De súbito acordou e tudo ficou claro: estava estatelado no chão com Jacomina por cima a abaná-lo e a chamá-lo. “O que foi…? O que se passou..?”, perguntou ele. De repente fez-se luz! O assalto! A sua nuca latejava de dor e o seu ventre não estava melhor. Com a ajuda de Jacomina lá se levantou. Joachim estava sentado numa pedra e o seu rosto denotava também algum sofrimento. Então ela contou-lhes o que se tinha passado a seguir à agressão: os 3 meliantes, que eram com toda a certeza os vaqueiros que tinham avistado antes na hora de almoço, tinham tentado abusar dela, a principio defendeu-se como pode, mas não resistiu muito tempo, 2 deles prenderam-lhe as mãos e quando o terceiro se preparava para a possuir à força, algo os fez recuar. Só já os viu a correr para as suas montadas, a picar a azémolas e a fugir na direcção de “Castel da Vide”. Jacomina, ainda meio estonteada com a situação, estava a tentar perceber o que tinha posto os bandidos em fuga, foi então que reparou numa nuvem de pó no horizonte e em 4 cavaleiros que se aproximavam vindos do lado de Nissa. Ao verem o cenário pararam e perguntaram a Jacomina quem eram, ao que vinham e porque se encontravam naquele lastimável estado. Ela contou-lhes o terrível episódio, o melhor que pode, tendo em conta as circunstâncias. Indicou-lhes em que direcção os meliantes se tinham escapulido. O que lhe pareceu ser o mais graduado dos nobres cavaleiros, pediu-lhe para tratar dos seus companheiros e nisto dispararam atrás dos vaqueiros! Pedro e Joachim nem queriam acreditar que tudo isto se tinha passado enquanto eles estavam estatelados no chão! Muito contrafeitos levantaram-se e recuaram até à fonte onde tinham comido há pouco tempo atrás. Lavaram-se e arranjaram-se, numa tentativa de aliviar a dor e darem um pouco de melhor aspecto às suas desmazeladas figuras. Felizmente que os meliantes, na sua ânsia de fugir, tinham esquecido os cajados, pois iriam, mais que nunca, fazer-lhes falta para neles se apoiarem, dadas as suas limitações físicas. Quando os peregrinos se preparavam para recomeçar a caminhar, viram aproximar-se na retaguarda 2 dos 4 cavaleiros. O mais graduado com quem Jacomina tinha falado, cumprimentou Pedro e Joachim, perguntando se estava tudo bem e de seguida disse-lhes já saber quem eram os bandidos e que em breve seriam detidos pelos seus outros 2 companheiros. Tinham voltado atrás porque faziam questão de os escoltar até Nissa, assegurando-lhes que mais nada lhes acontecesse e que poderiam dar parte do sucedido ao Juiz da vila de Nissa, D. Álvaro Dias. E assim fizeram os nossos peregrinos que lá prosseguiram a sua caminhada com os 2 cavaleiros na frente a abrir caminho. Ao cabo de quase 3 horas de marcha depararam-se com um cenário que não estavam preparados para ver! Ninguém estava! No alto de uma colina e no meio do nada, elevava-se imponente uma das mais belas fortalezas que já tinham visto desde que haviam começado a sua peregrinação: o castelo tinha 4 torres, na mais alta das quais estava hasteada a bandeira do reino. Acoplada ao castelo erguia-se uma fortaleza amuralhada com mais 6 torres, dentro da qual se distinguiam as 2 torres sineiras da igreja. Eram também visíveis casas junto à fortaleza mas, pelo que já tinham visto noutros locais, o núcleo central da vila deveria estar dentro das muralhas. Já nas imediações de Nissa passaram entre 2 capelas onde os cavaleiros os aguardavam. Por momentos pareciam ter esquecido a infelicidade que os tinha assolado nessa tarde, tal era a beleza do que os seus olhos avistavam. Os cavaleiros acompanharam-nos até ao castelo e apresentaram-nos ao Juiz da Vila Álvaro Dias, que os escutou muito atento e, à medida que ia ouvindo o sucedido, abanava a cabeça em sinal de consternação. Pela descrição que os peregrinos fizeram dos vaqueiros, o Juiz disse que um deles deveria tratar-se de Gonçalo Borrinho de “Castel da Vide”, sobre quem já tinha recaído outras queixas de desacatos. Após registada a queixa, Álvaro Dias pediu-lhes que permanecessem alguns dias, poderiam ficar na Capela de Santana, onde um enfermeiro se ocuparia deles e que seriam muito bem tratados até estarem em condições de prosseguir a sua peregrinação. Perante tamanha amabilidade os peregrinos não resistiram e acederam ao convite. No dia 22 de Março de 1455 e quando os nossos peregrinos se encontravam novamente em condições de poder prosseguir, foram chamados ao castelo, pelo Juiz, tinham finalmente prendido no dia 20 de Março o vaqueiro Gonçalo Borrinho e queria Álvaro Dias que o identificassem. Levados à sua presença logo disseram não ser aquele que lhe tinha feito mal. Não queriam acusar ninguém injustamente e apenas desejavam prosseguir a sua romaria para Santiago da Galiza! Pese embora as declarações abonatórias dos peregrinos, Gonçalo Borrinho permaneceu preso. Este com medo de ficar detido muito tempo e como era orfão, decidiu fugir do seu cárcere, andou a monte, mas sempre com temor da justiça régia, até que D. Afonso V lhe concedeu o perdão, com a condição do vaqueiro proceder à entrega de mil reais ao seu Capelão João de Évora. Entrementes já Pedro, Jacomina e Joachim tinha retomado a sua peregrinação e, quando se preparavam para fazer a travessia do rio Tejo numa barca junto à povoação de Ródão, não puderam deixar de reflectir sobre a ironia do destino: tinham evitado o Caminho de França por causa dos bandidos e tinham acabado por cair nas suas mãos onde menos seria provável que tal acontecesse, mas a forma como tinham sido salvos tinha reforçado a sua convicção de que Santiago da Galiza estava decididamente com eles!

Imagem: Castelo de Nisa (desenho de Duarte D’Armas, século XVI)